Guillermo Del Toro traz releitura franca, pesada, mas ainda mágica de um dos bonecos mais amados do entretenimento
Não vou mentir, sou perdidamente apaixonado pela releitura meiga (mas ainda assim, maluca e bêbada) do Pinóquio de 1940 feita pela Disney. Tem todo o teor mágico e o encantamento Disney de primeira qualidade de suas obras clássicas. Músicas cativantes, animações simples e belíssimas, e ainda assim humor politicamente incorreto e é claro.. final feliz. Bem diferente do live action inspirado, lançado também esse ano, que é uma tremenda perda de tempo e de muito mal gosto. Se quiser saber mais sobre essa versão assustadoramente ruim, dá uma conferida nessa resenha: https://blogfossilretro.wixsite.com/fossil-retro/post/luz-c%C3%A2mera-ossos-pin%C3%B3quio-de-2022-necess%C3%A1rio-colocar-o-ano-e-n%C3%A3o-confundir-fiasco-com-cl%C3%A1ssico
Esse ano tive a oportunidade de conferir o livro escrito por Carlo Collodi, que inspirou essas e outras diversas releituras em filmes. Por mais que eu amasse a versão da Disney, uma coisa era certa: não tem quase nada a ver com o livro. Lá, Pinóquio é o que faz mais sentido ser: um ser inanimado que, de repente, se tornou vivo e é uma criança. Curioso, maldoso, e sem senso de moral, o Pinóquio de Collodi causa desastres e tem consequências severas, mas no final, ganha com isso o tão desejado amadurecimento. O início da minha felicidade com a versão de Guillermo Del Toro nasceu em visualizar que o tom do livro finalmente apareceu. Aquele Pinóquio humanoide e bobinho da Disney aqui se torna o que é: uma marionete de madeira cujo objetivo é desfrutar dessa aventura chamada vida. Isso não necessariamente é uma história feliz.
Não é uma retratação fiel, é uma releitura. Del Toro conseguiu captar a essência do livro, lançado em meados de 1880, e trazer para uma história que se passa entre 1920 e 1940, não por acaso.. a história se passa na Itália, na época da grande guerra. Indo um pouco mais além, na época em que o fascismo estava em plena ascensão. E sim, o filme genialmente consegue abordar a ideologia fascista, de modo ousado e muito criativo.
Se o filme aborda elementos como fascismo, não espere encontrar muita coisa fofinha em tela. Aqui temos um Geppetto desolado pelo peso do luto, financeiramente miserável e sem esperanças, vários seguidores do movimento fascista, circenses manipuladores, crianças usando armas, entre outras cenas espantosas. Mas sim, também temos criaturas mitológicas com sua estranheza belíssima, toques de magia e até músicas cantadas! Calma, não é um musical, não precisa sair correndo. As poucas canções cantadas pelos personagens têm muito peso sentimental e se encaixam com muita delicadeza na trama.
Falando nos personagens, é difícil não elogiar o elenco inteiro. É só a voz que ouvimos, mas é justamente ali que mora o brilhantismo. Gregory Mann é uma criança com tom impecável de pureza e curiosidade. Assim como ele, o brilho é levantado pelos excelentes Ewan McGregor, David Bradley, Christoph Waltz, Tilda Swinton, Finn Wolfhard e até no personagem pouco usual da formidável Cate Blanchett. Cada um com suas características peculiares para apresentar ao boneco de madeira lições e demonstrações sobre sabedoria, amor, ódio, maldade e até mesmo a morte, um tema fortemente trabalhado no longa.
Para impressionar ainda mais, o longa foi criado utilizando a técnica trabalhosa, incrível e injustamente pouco reconhecida do stop motion! Junto ao filme, a Netflix lançou um vídeo de pouco mais de 30 minutos dos bastidores, mostrando a equipe com maquetes gigantescas e bonecos com diferentes escalas dos personagens pra passar um pouco da dificuldade dessa produção. Muito carinho, paciência e talento estão envolvidos e o resultado é esplêndido! Além de haver um cuidado extremo nos detalhes, alguns personagens, como o próprio Pinóquio, possuem características mecânicas próprias. Tudo isso unido a posições de câmera desafiadoras fazem a captura de imagens belíssimas em tela, muitas vezes em tons chocantes.
E é claro que vamos falar sobre o que interessa mais: a história! Sem dar spoiler pra quem curte uma surpresa, preciso avisar uma coisa: a classificação etária é para 12 anos, e não é por mero capricho. Como já falado, o filme bate muito na tecla do limiar da vida e da morte, assim como no significado de estar realmente vivo. Além disso, por falar bastante sobre guerra, se seu filho for muito novo talvez nem entenda completamente. Não seja o pai que diz "mas animação é pra criança!", porque já faz muito tempo que não é. A animação se tornou um gênero com muitos ramos, e Pinóquio foi feito pra trazer emoções, seja agonia, tristeza ou alegria. Guillermo conseguiu trazer personagens novos, assustadores e estranhos para explicar ao Pinóquio sobre a beleza e as armadilhas do mundo. Geppetto, por sua vez, não é um pai perfeito que ama o filho de todo o coração, pelo menos não no início. Dessa forma, Pinóquio de Del Toro é uma versão realista, por mais que suas passagens sejam absurdamente fantasiosas. O tom banal do mundo em que Pinóquio vive é o que causa o contraste e o interesse em saber como esse ser ingênuo e mal criado vai sobreviver nas adversidades. Aqui Pinóquio é um monstro Frankenstein, fruto de um marceneiro enfurecido pelas injustiças da vida, e a partir disso consegue transformar todos em sua volta com sua simplicidade.
O grilo falante se encaixa em muitas analogias, como seu coração ou sua consciência. E a maioria dos "vilões" acaba sendo conquistado pela empatia de Pinóquio. Chritoph Waltz é certeiro com seu personagem, o verdadeiro vilão ambicioso e cruel, que mostra ao boneco que, apesar das exceções, os vilões ainda existem. As criaturas do filme são curiosas, assustadoras e, de certa forma, muito belas. A "fada madrinha" dá lugar a um ser maior e melhor, uma guardiã que pode proporcionar a vida, e que tem a morte como seu reflexo.
É difícil elogiar tudo que o filme proporciona sem falar de algumas surpresas que vou deixar pra vocês conferirem. Existe um tom "Tim Burton" em alguns momentos muito especiais. O filme todo tem uma aura de tenebroso e bem humorado, e ao mesmo tempo cenários muito italianos e realistas. Pinóquio é uma mistura bem feita de história clássica revisitada com o lado sombrio e mitológico da vida.
Longe de ser previsível, Pinóquio de Del Toro é uma das boas surpresas de 2022, e que curiosamente tem um filme de mesmo título nos piores do ano também. Pinóquio e sua história, por mais densa e pesada que seja, é para todos porque mostra o que atualmente está em falta no cinema: a realidade agridoce dos pesadelos e maravilhas da vida. Onde há guerra, também há esperança, e assim como na mente do público, Pinóquio é uma referência eterna de amadurecimento. Nada melhor do que amadurecer com a sabedoria das verdadeiras dores. Del Toro acertou em cheio arriscando muito nesse balcão de elementos químicos sensíveis que forma a história clássica do boneco de pinho. Perfeito!
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