O mês de julho foi marcado por um embate cinematográfico, com os lançamentos simultâneos de Barbie e Oppenheimer, filmes completamente diferentes mas que foram alvo de muita atenção do público. A pergunta que não quer calar é: faz sentido todo esse rebuliço? O que esses filmes tem de bom/ruim? Qual a importância disso para o cinema?
Preciso começar dizendo que me dá muita alegria ver cinemas LOTADOS, com sessões ESGOTADAS e não ser devido a um time de super heróis com efeitos visuais horríveis. Esse embate de gigantes foi comandado por outros dois gigantes. Christopher Nolan, o diretor da consagrada trilogia do Batman, e filmes lendários como A Origem e Interestelar, e Greta Gerwig, a fantástica mulher que dirigiu o profundo e rebelde Lady Bird, e o sensível e dramático Adoráveis Mulheres, dois filmaços de elenco impecável. Outra semelhança entre os dois é que não lotaram seus filmes de efeitos visuais, mas tiveram preferência por efeitos analógicos, o que pra mim faz TODA a diferença, como grandes clássicos do cinema que amo fizeram. Muitas franquias perderam sua identidade por se render ao CGI completo. Lembrem-se de que aqui estamos falando de filmes sobre bombas atômicas e bonecas que vivem em cenários utópicos, ou seja, super propício ao CGI, mas preferiram fazer do modo difíci, ou melhor dizendo, prezando pelos detalhes e capricho.
Curiosamente, apesar de não ter tomado partido no mundo das redes sociais, tive que fazer essa escolha no mundo ao real tendo que escolher: Barbie ou Oppenheimer? Isso devido a eu ter que assistir em dias diferentes, tive que escolher quem seria o primeiro. Minha prioridade seguiu um critério justo: Nolan é MEGA conhecido pela perfeição na filmagem (com suas caríssimas câmeras IMAX), e cada filme seu no cinema é uma baita experiência. Então no meu caso, o primeiro foi Oppenheimer.
Oppenheimer é o estilo Nolan, só que dessa vez vestindo um drama maravilhosamente construído. Famoso pelos filmes de ação recheado de conceitos de quebrar a cabeça, Oppenheimer é diferente de muito do que Nolan já fez, talvez se aproximando um pouco mais de Dunkirk, também um filme histórico. A diferença é que ao contrário de Dunkirk, Oppenheimer dosa a realidade com imagens da perturbação sentida pelo famoso cientista de mesmo nome, e consegue entregar emoção, atuação de não colocar um pingo de defeito, e deslumbres visuais pontuais, mas muito, muito satisfatórios. Vale o IMAX? Pra mim não. Mas vale cinema, definitivamente. Nolan sempre entregue excelência, e seu time de monstros não podia deixar devendo. Cillian Murphy é brilhante, e tem aquela tensidade no olhar, fora suas várias transformações visuais durante o filme. Confesso que sempre vi Robert Downey Jr. com muito preconceito, mas ele se provou na atuação desse filme com o diabólico Lewis Strauss, fenomenal. Outros destaques incríveis ficam para a majestosa Emily Blunt e Matt Damon.
Oppenheimer tem muitas qualidades, mas talvez seu maior ponto positivo seja a montagem que permite a construção de uma tensão crescente e que no final explode em forma de grandes reflexões. Engana-se quem pensa que esse filme é só preto no branco, história por história. Na verdade, Oppenheimer tem muito mais a ver com o mundo contemporâneo do que você pensa, pois estamos cercados da inovação que a qualquer momento pode nos enforcar. Assim como as I.As, os princípios que originaram a bomba atômica foram um misto de inovação e questionamento da evolução do conhecimento do homem, e da ponderação da escolha. Quando existe a lógica exposta a um ser pensante, a escolha é limitada à ação de quem pensou ou de quem executa? E faz diferença? Pode-se evitar a criação de algo materializado, mesmo que em outro conceito anterior? Estudando a morte de estrelas em algum momento chegaríamos inevitavelmente a uma bomba atômica? Na verdade o mais preocupante é a simplicidade disso tudo: o conhecimento procurado é inevitável, e não existe moral dentro de si, só de quem o utiliza. Oppenheimer mostra de maneira brilhante como a moral de seu cientista foi impactada e gerou uma culpa não promovida só por si mesma, mas pelo próprio país que encomendou essa arma.
Falando de ritmo, o filme pode ser sim bem difícil de assistir pra alguém que não espere tantos diálogos. A história é uma guerra de argumentos, e se apoia neles pra construir seu núcleo, afinal estamos julgando um cientista dentro do que ele criou, mesmo que sob encomenda. Se estiver com sono, provavelmente você vai dormir. Se estiver atento, vai presenciar um filmaço!
Além da história incrível e elenco pesado, o filme conta uma trilha sonora envolvente, momentos visuais belíssimos e assustadores, uma sonoplastia FANTÁSTICA, e a graça de assistir um filme do Nolan: piscou, perdeu. Não pense que só por ser histórico vai ser fácil. O filme mescla momentos em colorido e preto branco (por um motivo.. mas vou deixar você pesquisar), e não necessariamente uma ordem cronológica linear. Nolan continua um diretor extremamente engenhoso e que fez um filme incrível sobre os limites da ciência e da corrupção do homem. OBS: A presença do "personagem" Albert Einstein é um show a parte.
Enquanto Oppenheimer carrega o peso dramático da culpa de muitas mortes, um outro filme também fala da morte, só que bem mais... rosa. Barbie, da aclamada Greta Gerwig, também critica o rumo que o homem (calma red pills, o ser humano) tomou com suas escolhas, mas com uma proposta completamente diferente. Com muita ironia, cor, analogias, quebra de quarta parede, musical, metalinguagem e humor, Barbie é uma crítica social vestida de comédia pastelão. A ícone da cultura pop, interpretada pela brilhante Margot Robbie, coloca em questionamento o propósito da boneca no mundo depois de sentir coisas estranhas dentro do "seu" mundo, sem imaginar que existia mais de um e que o mundo real estivesse tão longe dos ideais que defendia.
Só existe uma palavra pra Barbie: genial. Desde o seu início inteligente parodiando 2001: Uma Odisséia no espaço até um final profundo, Barbie é uma odisseia de personagens em busca da sua identidade. Num tom proposital (ou não), o início da história baixa o nível de expectativa com um mundo que beira ao ridículo com seus bonecos-humanos vivendo um sonho que está longe de ser compatível com a realidade. As cenas no mundo real são ainda mais grotescas, mas a proporção de bobeira que elas entregam estão na mesma proporção da realidade. O filme tira sarro de cenas cotidianas, e talvez por isso seja tão cômico e assustador ao mesmo tempo.
Barbie tem muitas qualidades técnicas, como seu visual analógico belíssimo, trilha sonora divertida e fundida na história, atores incríveis em seus papeis cômicos, mas o ponto mais alto de Barbie é, definitivamente, TODAS as suas mensagens. Um filme necessário que com certeza poderá ser usado para reflexão por anos depois de seu lançamento.
Para os frágeis de plantão, saibam que esse filme é justamente pra vocês. Com o andamento da história, temos muitos ângulos não só sobre a boneca, mas sobre o que os homens e as mulheres representam. Temos os homens falando sobre as mulheres, as mulheres sobre os homens, os homens sobre os homens e as mulheres sobre as mulheres. E por mais que o filme esteja carregado de situações reais, ele não ousa dar uma solução definitiva que talvez nem exista, mas entrega uma bandeija com um debate bem tempeirado. E claro que a dor viria de vários lados, como ainda está sendo possível presenciar nas redes sociais. Um exemplo são alguns líderes religiosos dizendo que o filme incita a rebeldia e violência contra os homens. Além de isso ser uma grande falácia, muito provavelmente esses comentários vem de quem não assistiu a nenhuma cena do filme.
As maiores virtudes do longa estão em reconhecer que nossa sociedade tem uma grande dificuldade de diferenciar ideologia de identidade. Num século XXI lotado de "avatares" onde temos que nos guardar em caixas, não sobre espaço para debater quem nós somos. E sem saber quem nós somos e nossos objetivos, é muito mais fácil adotarmos um lado qualquer e fazer o que todo mundo faz nesse lado, e defender essa posição fervorosamente. O individualismo é muito mais complexo, mais vasto e muito mais difícil de vender. Além do embate entre ideologia e identidade, Barbie reforça que uma saída simples para começarmos a lutar por qualquer coisa é a empatia. Quando eu olho para o próximo e ele olha pra mim, fica mais fácil chegarmos num meio termo. A mensagem é quase infantil, podendo até chamar de óbvia, mas sabemos que a prática é muito mais complexa, e Greta Gerwig conseguiu de forma magistral também passar isso para o longa.
Sendo assim, pra quem ficou em dúvida, sim. O filme fala sobre feminismo, patriarcado, gêneros, mas também fala sobre capitalismo, identidade, ideologias, e os benefícios e malefícios de toda essa salada. Assim como diz o trailer de forma transparente, esse filme é para quem ama e odeia a Barbie. A própria boneca principal não escapa dos efeitos que provocaram opressão na imagem da mulher na sociedade, e é satisfatório ver um filme dessa boneca a criticando e zombando da própria criadora, a Mattel. Isso até pode ser uma baita jogada marketeira, mas também é maturidade. Qual o problema de unir os dois?
E não acaba por aí. Se você tem sua identidade e sabe no que acredita, o que resta é saber o propósito. E sim, o longa também aborda isso. São raros os filmes que conseguem lidar com um fenômeno pop de peso e transforma-lo num agente de discussão tão ampla. Fazer a boneca plástica se tornar carne na tela vai muito além do que vestir uma atriz de rosa. Foi necessário fazer o telespectador refletir se ele realmente está assistindo um filme sobre uma boneca ou sobre todas as pessoas.
E o efeito Barbenheimer.. faz sentido?
Faz muito sentido.
Tem muita gente desocupada e chata por aí, vamos combinar. Eu sinceramente vi todo esse embate de forma muito positiva. Poderíamos estar defendendo políticos de estimação ou se degladiando por partidas de futebol, mas estamos discutindo qual filme vamos assistir. Estamos vestindo rosa pra ir no cinema e estamos defendendo pontos de vista. De certa forma, estamos pensando. É claro que nem todo mundo vai sair com as mesmas impressões, e isso é ótimo, mas o que me deixa ainda mais satisfeito é saber como esses filmes são necessários da melhor forma.. olhando pra fora da tela.
Várias pessoas me perguntaram "mas Barbie é tudo isso mesmo?". Ninguém me perguntou isso quando eram super-heróis com roupas ridículas ou alienígenas azuis de 3 metros batendo as bilheterias. O questionamento é realmente seletivo, você não vê? Oppenheimer também fez um baita sucesso, mas ninguém tenta descredibilizar sua fama. Fico feliz de termos dois filmes extremamente diferentes entre si mas tão atuais em suas propostas. Oppenheimer e Barbie são cinema, e dois valem muito seu ingresso. Veja com a mente aberta, e tenho certeza que vai ter muito pra extrair.
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