top of page

RUGIDOS E GRUNHIDOS: FOSSORA - A DECOMPOSIÇÃO DO LUTO E A RECONEXÃO

blogfossilretro

Nunca ouviu falar no nome Björk? Nem imagina como se pronuncia? Infelizmente, isso é bem comum. O visual chamativo e excêntrico da cantora pode até te fazer achar que é mais uma das várias cantoras que surgiram após o fenômeno Lady Gaga, mas não. Fossora é o décimo álbum de estúdio (fora trilha sonoras e outros projetos paralelos) da cantora islandesa Björk, uma artista desafiadora e que anda de mãos dadas com a inovação e experimentação. Além de cantora, ela é multi-instrumentista, produtora, atriz e impacta o mundo da música e da moda com suas influências.


Björk é uma artista feita em conceitos, desde sempre. Tive meu primeiro contato com seu trabalho em outubro de 2011 com o lançamento do álbum Biophilia, onde a própria cantora e produtora desenvolveu instrumentos a partir de minerais para a composição instrumental do álbum (tem documentário sobre esses bastidores no YouTube ou pela internet a fundo, é insano de interessante). Björk existe em cima daquilo que acredita, em passar os sentimentos e conceitos em forma musical, inteiramente.


E por quê uma artista tão incrível assim é pouco conhecida? Justamente pela sua maneira única de transmitir sua arte, a música de Björk pode não ser tão palatável. Sua estrutura sonora geralmente foge do comum "estrofe - ponte - refrão" facilmente reconhecida em músicas populares. Além disso, possui um forte sotaque em seu inglês e não se preocupa em ser "melodiosamente agradável". Björk não é do mainstream e nem quer ser. Fossora segue a mesma linha experimental que todos os outros álbuns da cantora, mas também assim como eles, soa único!


Fossora é um álbum de reconexão. Após os aéreos e mais introspectivos Vulnicura (2015) e Utopia (2017), focados principalmente em seu divórcio, Fossora é mais instintivo, retratando sobre a morte de sua mãe e seu retorno à terra natal. Toda a temática do álbum, incluindo arte, letras, videoclipes e conceito geral, é voltada para os fungos. Isso mesmo, esses seres foram utilizados como uma analogia genial de conexão com a terra, sobre colocar os pés no chão, e ao mesmo tempo decompor sentimentos que vem a tona diante de situações arrebatadoras. E é claro, a partir dessa composição, crescer e se conectar ainda mais com outros seres e consigo mesma.


A sonoridade, pra quem já conhece o trabalho da cantora, é como se fosse uma união dos álbuns Medúlla (2004, o meu favorito da discografia), Volta (2007) e Utopia (2017). Traduzindo pra quem não conhece: várias canções com uso diversificado de instrumentos de sopro e cordas, mas ao mesmo tempo misturado a batidas eletrônicas frenéticas, e ainda utilizando técnicas de beatbox ou melodias isoladas somente com vozes. Björk é certeira em suas técnicas, e extremamente detalhista. Apesar de ter referências sonoramente reconhecidas, tudo parece novo em folha, misturado aos novos conceitos. Outra novidade são as colaborações, raríssimas em trabalhos anteriores, aqui temos a presença de vários artistas, principalmente experimentais, como os vocais de serpentwithfeet, Emília Nicolas, dos grupos Murmuri, Hamrahlíð, entre outros (temos vocais, inclusive, de seus filhos). Pode-se dizer que o que Björk não inovou em instrumentos novos, inovou em arriscar-se a se conectar com outros artistas. E acertou.


O álbum abre com seu primeiro single, 'Atopos', já definindo um tom padrão que irá percorrer toda a experiência: um ritmo definido no início que se tornará explosivo no final. A música vai de uma percussão desconexa até uma euforia eletrônica, rara em álbuns da cantora. A faixa seguinte, e também single, 'Ovule', tem a riqueza de camadas de vozes e a mensagem de esperança e reflexão do que representa o pertencimento materno. Não sozinha, outras faixas fazem referência direta ao sentimento do luto, culpa e depressão frente a esses eventos, como o que ocorre em 'Sorrowful Soil' (minha predileta do álbum, apesar de ser difícil não parecer injusto), 'Ancestress' e 'Victimhood', todas essas homenagens à sua falecida mãe. É incrível perceber também as fases do luto que ocorrem entre essas canções, com um belo exemplo de 'Fagurt Er í Fjörðum', um quase-interlúdio-poema em que claramente a tristeza cede dando lugar à próxima faixa, com o tema de vitimização. Nessa trilha, Björk traz memórias, sentimento, ancestralidade, história, aceitação e culpa, até que finalmente, cede. Como entoa ao final da curta interlude reflexiva, "...Pessoas e animais morrem então".


A fenomenal 'Mycelia' e a misteriosa 'Trölla-Gabba' são 100% instrumentais, algo também raro nas discografias, mas atuam de maneiras diferentes, mesmo que as duas ofereçam o tom de suas faixas precedentes. Enquanto uma enriquece o clima psicodélico sonoro, a outra traz o tom denso de tensão. Atuam quase como interlúdios pra preparar o ouvinte ao que vem pela frente.


A partir da faixa 'Allow', estamos claramente vivendo o pós-luto. Essa, 'Fungal City' e 'Freefall' trazem o mesmo sentimento: libertação. Aceitar a morte como parte natural da vida e deixar com que a vida restante continue e cresça. 'Fossora', música que dá origem ao título do álbum, resume um pouco da visão abstrata e analógica dos fungos, ressaltando o poder da terra para dissolver e apodrecer as dores, e transformar essa matéria simbólica em algo maior.


'Her Mother's House' é uma última reflexão sobre a jornada emocional, cantada junto à sua filha, Ísadóra Bjarkardóttir, em um padrão de canto e resposta, em conjunto com os clarinetes. A faixa tem muito sentido, aqui estamos olhando a geração seguinte olhando para o futuro. Dessa vez, Björk se vê entoando para a própria filha. Muito significado né?


Talvez seja difícil perceber todas essas nuances à primeira audição, e é compreensível. Demorou muito pra que eu pudesse admirar o trabalho da Björk e entender como aqueles montes de sons "estranhos" se encaixavam de alguma forma. Você perceberá que, para todas essas mensagens e poesia, os sons acompanham as nuances. Em passagens mais dramáticas, o instrumental quase inexiste, enquanto algumas passagens podem ser absurdamente malucas. Björk se tornou uma referência musical e artística para mim, pois nunca esteve preocupada em reverberar de forma unicamente comercial, mas sim sendo original e que tivesse êxito em trasnformar suas sensações em obras musicais e visuais. Os impactos disso? Sim, Björk não tem grandes retornos financeiros, já teve inúmeros conflitos com a imprensa e com grandes nomes do mundo da música, mas ainda não perdeu sua integridade e originalidade, ao menos por enquanto.


Fossora é uma experiência imersiva de suas perdas e reconexão ao solo, e com isso gera uma perspectiva do futuro. Não é um álbum pra se ouvir no trânsito barulhento ou no trem. É preciso calma, reflexão e atenção aos detalhes, assim como recomendo escutar com um excelente fone de ouvido. Assim como todos os álbuns anteriores da discografia dessa cantora peculiar, o novo trabalho é complexo e muito rico, preocupado em trazer o que muitos artistas do mainstream atualmente deixam pra trás: emoção. Perfeito!



19 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 Comment


andre_peba
Oct 05, 2022

Será que alguém falou em anti-mainstream aí?... Claro que curto Björk!

Like
bottom of page