Que atire a primeira pedra aquele que nunca desistiu de ler um clássico do qual já havia iniciado a leitura. Sei que a leitura de um clássico muitas vezes é bem difícil de ser concluída, não somente pelo linguajar, mas também pela maneira de como o livro discorre e sempre temos que considerar a época em que o livro foi escrito, em que a sociedade era outra, porém se você der uma chance tenho certeza que vai acabar percebendo que muitos costumes (não tão bons assim) ainda continuam por aqui.
A definição de "livro clássico" possui diversas facetas. Clássico pode remeter ao período do Classicismo, mas também pode remeter a livros que serviram de inspiração para outras obras literárias no futuro, ou até mesmo a obras que perduram gerações e correm pelos séculos. Acredito que ambas definições estão corretas. Inclusive, os clássicos tem geralmente o poder de serem odiados em seus lançamentos (não somente livros, mas filmes também, 2001: Uma Odisséia no Espaço é um exemplo), e isso geralmente acontece quando estão muito a frente de seu tempo. Quando realizar a leitura de um clássico, é muito bom sempre buscar um conteúdo adicional pra entender o contexto dele naquela época e como foi a evolução do seu título para os leitores. Isso não significa que os clássicos são livros "impecáveis" e que você vai amar de primeira, ou que não vai largá-los após diversas tentativas. Minha luta pra terminar a leitura de "Os Irmãos Karamazov", por exemplo, é real e ainda não terminou. Mas sim, os clássicos têm seus poderes, e aqui vou falar sobre dois deles.
Entre os meses de julho e agosto tive o prazer de ler dois clássicos entre minhas leituras (considerando que faço a leitura de 2 obras paralelamente, e nesse caso li uma após a outra). Drácula, que eu já havia comprado uns bons anos atrás e finalmente resolvi dar uma chance para o vampiro mais famoso da cultura pop, e Morro dos Ventos Uivantes, um dos livros que ganhei no aniversário e que me trouxe muitas surpresas.
Drácula, publicado em 1897 por Bram Stoker, é um livro super pop que mudou pra sempre a história da literatura. Existiam poucos livros que mencionavam vampiros antes de Drácula, mas definitivamente não como ele aborda, com seus tons investigativos, sensuais e cheio de polêmicas.
O livro pode afastar os leitores pela sua estrutura diferentona, baseada em cartas, registros e diários, e pela sua falta de protagonista único. Sim, esse é um livro formado por vários personagens contando relatos dentro de um grupo, e não se dedica a ninguém específico. Ousado! Por outro lado, o livro é uma aula de como construir um bom suspense. Pra quem conseguir engatar, vai ficar preso no caminho da história e querer entender onde tudo aquilo vai dar.
Se você imagina que Drácula seja um livro que explore a vida dos vampiros e que tenha bastante ação com caças a vampiros, lutas, superpoderes vampirescos, e etc.. já vou te decepcionando. Drácula pra mim é, sobretudo, um livro de suspense e um grande exemplo de livro de terror, focando no estado psicológico de alerta e na pressão que a história gera. Nela temos alguns personagens de foco que possuem experiências relacionadas a ataques vampirescos desse ser misterioso e poderoso, que aparece no livro em pouquíssimas páginas, o que não é um descrédito.
Pense em Drácula não como um livro focado em seu personagem de título, mas como um "tema" que conduz uma história de terror, onde você sabe o que está causando aquilo (difícil você não saber o mínimo sobre o que Drácula é, certo?), mas os personagens não fazem ideia. O livro se divide dentro de algumas histórias principais, começando com Jonathan Harker em sua mansão gigantesca, labiríntica e claustrofóbica, partindo para a misteriosa doença de Lucy, que perdura por muito tempo no livro, em paralelo com o manicômio aos cuidados do Dr. John Seward e com o professor icônico, Van Helsing. Esses personagens se cruzam de maneira inteligente e minuciosamente exploram as ações estranhas que acontecem. O livro tem uma ambientação gótica/vitoriana bem interessante, personagens extremamente cativante, mas um andamento que pode ser bem arrastado, o que pra mim não foi um problema entendendo o teor da trama. O maior pecado pra mim fica no final, muito embaralhado e cheio de movimentações geográficas, o que pode deixar confuso e talvez até finalizar "seco" demais, frente a riqueza de suspense ao longo da obra. Nesse meio tempo temos romances, mortes, interação com cadáveres, fantasia e muito alho (literalmente).
A história também acaba contendo "mini" histórias dentro de si, como a história da embarcação Demeter, de longe uma das minhas partes favoritas do livro, e que se tornará filme em 2023, chamando-se "A Última Viagem de Demeter". Também tivemos recentemente um filme dedicado a um dos personagens do livro, Renfield, no filme "Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe". Ou seja, mesmo depois de MUITOS anos, Drácula ainda está por aqui pra contar história e inspirar várias obras da cultura pop, desde outros livros até diversos filmes. Inclusive, um dos filmes mais famosos é o de 1992, "Drácula de Bram Stoker", dirigido por Coppola e com um elenco de dar inveja, com Keanu Reeves, Winona Ryder, Gary Oldman e Anthony Hopkins. Confesso que eu já não era muito fã do filme, e depois de ler isso piorou. Essa adaptação, assim como a maioria dos filmes sobre a obra, não focam em captar a longa investigação presente no livro. O filme de 1992, por exemplo, é visualmente deslumbrante, mas extremamente erótico em excesso, deixando de explorar os personagens e focando em cenas ridiculamente pornográficas. Além de conter uma história de "amor reencarnado" sem sentido algum.
O livro é fácil? Não é. E o prazer dele está muito mais no andamento do que na conclusão, o que vai contra muito que leitores mais jovens, por exemplo, procuram. Não é uma história de plot twist, sua maior qualidade reside na construção de um clima pesado e tenso, com pitadas de sedução, mistério e uma agonia em ter soluções para o que está ocorrendo.
Morro dos Ventos Uivantes é ainda mais antigo, sendo publicado em 1847 pela autora Emily Brontë, das famosas Irmãs Brontë. Minha primeira relação com essa história foi pela música de mesmo nome, "Wuthering Heights", de Kate Bush, uma música lindíssima e uma das prediletas dos meus pais. Cresci com a curiosidade de saber mais sobre a história, e finalmente tive essa oportunidade. Assim como em Drácula, o livro foi simplesmente devorado, mas por motivos diferentes. Essa obra vai fazer você amar os personagens, e depois odiá-los, e depois ama-los de novo.. parece um pouco a vida, não? E de fato, os personagens são muito vivos. Emily criou uma ambientação simplista para acolher personagens extremamente fortes e diferentes entre si numa história de amor doentia.
Nessa trama, acompanhamos o desenvolvimento de um núcleo familiar e de vizinhos inseridos numa zona rural inglesa, visualizando os personagens desde que eram crianças, seu desenrolar e até algumas "finalizações". Com linguagem rebuscada, mas ao mesmo tempo acessível, a história praticamente inteira acontece em forma de relatos de uma das personagens principais e narradora principal, Nelly Dean, oferecidos ao personagem Lockwood, um personagem dispensável que só serve de escada para essa história maluca e deliciosa. É muito difícil convencer a ler esse livro sem acabar contando um pouco da história, e por isso não farei. O Morro dos Ventos Uivantes é uma história de escândalos, sobre tudo para a época, casos familiares, amores proibidos, doenças psicológicas e relacionamentos tóxicos. Os personagens Cathy e Heathcliff são os principais combustíveis e seus lados viscerais são muito explorados. É também, dentro de seus limites, uma história de horror, pois traz a maldição dos desejos e da assombração da consumação deles dentro da realidade. Em determinados pontos, você não terá certeza se a "irrealidade" está acontecendo ou não. O livro tem seus fantasmas, mas independente de serem espectros vagantes ou memórias, eles são reais.
Heathcliff é um personagem complexo, extremamente rico, e é o nosso principal anti-herói. Ele é o catalisador de todo o rebuliço da história, e essa sim conta com diversos plot twists, inclusive pela maneira em como foi escrita. A autora é genial em não contar tudo de primeira para o leitor. Em um momento você pode achar que um personagem está simplesmente doente, e no outro ele dá a luz. Pra você ter noção da ambiguidade de sentimentos, pelo Heathcliff tive dó, atração, ódio, repulsa, entre outros sentidos.
Todos os personagens de O Morro dos Ventos Uivantes são produto de suas motivações mescladas ao que lhes ocorreu no passado. Isso parece óbvio por parte da constituição de humanos, mas o genial é a maneira em como a autora constrói isso no livro. Aqui não há a separação de anjos e demônios, só a exposição de humanos machucados e sedentos.
A história é bem acessível, quase uma novela, e muito muito viciante. Devorei esse livro mais rápido do que Drácula, justamente porque queria saber a próxima doideira que aconteceria. Nem preciso dizer o tamanho da minha satisfação ao finalizar essa obra que prova o quanto precisamos dar importância à história das pessoas e que o que vemos no presente nada mais é do que uma construção de alguém que já teve um passado. Quem lê isso pode pensar que o livro é só um romance bobinho cheio de filosofia, mas não, aqui temos fortes momentos de agressão física, psicológica, mortes, fantasmas, escravidão, discussões de contexto da época como acesso ao conhecimento, servidão, casamentos arranjados, entre outros fatores. Vale MUITO a pena conferir.
Esses dois títulos são eternos, mas não da mesma forma. Drácula é amplamente conhecido até por quem não leu. Acima de ser só um livro, se tornou um símbolo de atração perigosa, terror e horror, e uma figura que inspira muitas coisas, principalmente em seu apelo visual. É muito mais conhecido pelo que foi criado em cima da obra do que pela obra em si. Não tanto como Drácula, mas Morro dos Ventos Uivantes teve diversas adaptações para cinema e séries de TV, numa história que também foi bem modificada pelo tempo.
Os dois livros ousam para suas épocas, e não foram bem recebidos. O Morro ainda foi mais subestimado, pois era sempre comparado com o famosíssimo Jane Eyre, obra da irmã de Emily, em parte por acharem que os livros foram escritos pela mesma pessoa. Ambos possuem personagens fortes, dentre eles principalmente MULHERES muito poderosas. Por outro lado, Drácula é "educado", e mantém a "classe" esperada por elas, enquanto o Morro expõe personagens muito mais verdadeiras, assim com homens muito mais verdadeiros. Morro dos Ventos é visceral, e Drácula é elegante. Os dois são clássicos merecidos e merecem sua atenção, mas vão exigir a dedicação que um clássico exige. E claro, sempre vale a pena lembrar, o maior prazer deles não é o que os tempos modernos entregam. Você não vai ter um chuva de dopamina ao final dos livros, pois não foram criados pensando nisso. Deguste os momentos que essas histórias podem te entregar. Sinta o apelo desses personagens e se entregue aos seus deleites. Odeie ou ame os personagens, e se odiar com força grande parte deles provavelmente estará provado o porquê de essas obras serem grandiosas. O maior talento de um autor é fazer-nos esquecer que ele existe, restando apenas seus personagens exuberantes.
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