Você acredita no diabo? Muitos podem parafrasear o filme Constantine com a famosa frase, "Deveria, ele acredita em você", mas eu vou só dizer que "diabo" pode ser um símbolo para muitas coisas, dentre elas o próprio mal ou uma força. Independente da existência do diabo, eu tive uma educação religiosa cristã protestante, o que significa que figuras como o diabo, Deus (com D maiúsculo, né?) e Jesus sempre foram figuras presentes nos meus pêndulos morais.. até um certo momento da vida. Apesar de ter ensinamentos valiosos dessas figuras, ao longo dos anos fui amadurecendo minha consciência e discernindo sobre o que eu realmente acreditava, e hoje me considero um agnóstico.
Como mencionei, ter uma educação religiosa cristã inclui seus pais terem vários livros sobre isso (além de mil versões da bíblia). Dentre eles, havia aqui na estante um livro de um autor famosíssimo pela sua obra de fantasia "As Crônicas de Nárnia"(que já tentei ler inúmeras vezes, mas fracassei em todas - é uma fantasia BEM fantasiosa), história inclusive com várias estruturas que fazem referência à bíblia. C. S. Lewis, além de ter escrito essa série de livros de fantasia, também escreveu alguns livros de literatura com temática religiosa. Dentre eles, "Cartas de um Diabo a seu aprendiz". Confesso que nesse caso fui fisgado pelo nome, mas assim que comecei a ler não pude largar. Isso é impressionante considerando que eu jamais escolheria um livro dessa temática pra ler deliberadamente, mas algumas coisas nesse livro me chamaram muito a atenção. Se você acredita no diabo ou não, não interessa. Leia esse livro do ponto de vista filosófico e verá que ele tem muito a ensinar sobre convivência e os contrastes da humanidade e da moral.
"Cartas de um Diabo a seu aprendiz" é basicamente o que o nome diz. É uma coleção de cartas onde um demônio ensina a seu aprendiz (outro demônio) sobre como ele deve cuidar de seu paciente (um humano). Nessa simples empreitada, não há uma história de início, meio e fim, mas cada carta traz um contexto sobre a vida desse humano e sobre como esse demônio aprendiz deve agir de maneira estratégica para afastar esse humano do Inimigo (na perspectiva do diabo, Deus é o Inimigo - com i maiúsculo).
O livro tem um tom que pode assustar os mais dogmáticos, mas é preciso admitir que é muito divertido, pois todos os "ensinamentos" do livro são cruéis e devem ser lidos de forma reflexiva, já que as verdadeiras mensagens estão com o ponto de vista moral invertido. O demônio caçoa dos humanos, mesmo que com algumas verdades, a todo momento. "Você não se dá conta de quanto eles são escravos do cotidiano". Banaliza os rituais religiosos, como as orações, e faz uso de "passo a passos" para determinadas ações, como um bom tutor. Um exemplo forte é de como "tornar as orações espirituais ao extremo", fazendo com que o paciente se preocupe mais com seu ritmo, estrutura ou devoção, do que se preocupar com as pessoas reais que estão sendo citadas, "até o ponto de se orar por uma pessoa imaginária". O mais perspicaz é que ele faz uso da valorização dessas práticas justamente para afasta-las do seu real objetivo. Então ao invés de aconselhar seu aprendiz com "não deixe seu paciente orar", o conselho seria "faça seu paciente acreditar que uma oração super rebuscada, cheio de floreios e devoção é mais importante do que orar pensando em problemas reais das pessoas reais e que você se importa realmente". Entrelinhas, o objetivo é sempre afastar o humano da honestidade, da franqueza e da compaixão, tornando-o cada vez mais egocêntrico e ritualístico.
Além dos diversos conselhos, há várias reflexões sobre o caráter humano e o "não humano" desses seres, como sua percepção do tempo e da eternidade. "O presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade", e "O futuro é aquilo que é menos parecido com a eternidade", são parte da justificativa de um dos conselhos mais fortes do livro: "Não há nada mais eficaz que o suspense e a ansiedade para bloquear a mente humana contra o Inimigo". Veja que aqui o diabo cria um paralelo entre a ansiedade e a esperada "vida eterna" adquirida pela salvação, muito fácil de identificarmos na rotina de qualquer um. Se há tanta certeza por uma vida eterna, por quê tanta preocupação com o futuro? É justamente nesses pontos "fracos" de ser humano em que ele atua, fazendo com o que o mesmo viva na hipocrisia.
E como mencionei antes, não só de banalização vive o diabo, mas de valorização também. No livro, o aprendiz acompanha uma fase de conversão do seu paciente, que está iniciando na igreja e inicia um relacionamento com uma mulher cristã. Ao invés de criticar seu aprendiz por "deixar seu paciente desviar", ocorre o contrário. O diabo o guia dentro dessa nova vida de espiritualidade por caminhos tortos, como pela abnegação entre os sexos no relacionamento e incentivando o orgulho espiritual, para que ele se sinta um iniciado no mundo "misterioso" do cristianismo.
E dentre todos os seus conselhos odiosos, o diabo às vezes acaba passando as mensagens do que o seu "Inimigo" pensa pelo livro, como a explicação de como Deus enxerga o amor, "O bem de um ser é ser o bem de outro, Ele chama essa impossibilidade de amor". Então além de você se atentar à sua moral invertida, deve também caçar as pérolas escondidas que supostamente seriam direcionamentos de Deus e do que ele deseja para a humanidade.
Sim, o livro é divertido, mas também é pesado. Assim como ele é curtinho (menos de 200 páginas), e tem leitura fluida, também exige várias reflexões a cada carta, e o cuidado de tentar entender a verdadeira mensagem, que sempre estará distorcida por esse ser demoníaco. Ao final, pra mim foi o melhor livro de literatura em temática cristã que li, pois é genialmente estruturado. Ter o ponto de vista do diabo no livro faz com que vejamos que, ao contrário do que muitos atiram pedras, o lobo quase sempre vem vestido de cordeiro. O mal não é um ser com chifres, tridentes e armas, pelo contrário, utiliza o nome da paz para causar as mais terríveis guerras. O mal é sutil, e quase nunca escancarado. Ele é uma estratégia com objetivo. Ele não mora nos "estudos" ou na "ciência", mas sim na ignorância, na generalização, na banalização e na superficialidade.
Se o mal é uma personificação ou não, é uma percepção individual. Penso que todos nós podemos ter atitudes com objetivos negativos, e isso é uma decisão, e como tudo na vida.. tem um preço. Justamente por isso vale a leitura, pois muito além de um "livro de crentes", é uma leitura filosófica que demonstra que a crueldade, definitivamente, não tem estereótipo, e pode ser apresentada das formas mais "belas" ou "religiosas". Como citado pelo próprio "maldanado" no livro, "Os grandes pecadores são feitos do mesmo material que aqueles fenômenos horríveis, os grandes santos".
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